domingo, 2 de fevereiro de 2014

Abandono





Foi há algum tempo...

Lembrei bem deste episódio ao assistir o primeiro capítulo do seriado 'Doce de Mãe', com Fernanda Montenegro, que contraria este meu conto real...

Então...

Apanhei um casal de irmãos na faixa de 50 anos de idade junto com a mãe idosa...

No Leblon...

Filha e mãe sentaram no banco de trás...

O homem sentou ao meu lado, no banco do carona...


Suando muito, cochichou:

- Você conhece um asilo na Rua São Miguel na Usina?

- Não, mas conheço bem a Rua São Miguel, se o senhor tiver o número do prédio é fácil encontrar...

Pegamos a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Tunel Rebouças a caminho da Tijuca que desemboca na Muda, Usina e Alto da Boa Vista...

A idosa procurava puxar assunto e eles eram ríspido, interrompiam qualquer tentativa dela dialogar...

Estavam irritados, nervosos...

É muito comum, no táxi, eu presenciar filhos já sem paciência com pais em idade avançada...

Normalmente finjo que não percebo para não colocá-los pra fora do carro...

Quando envelhecemos perdemos a beleza física atrativa; capacidade de produzir riqueza e disposição para rechaçar ofensas que fabulamos não ultrapassar nosso limiar da consciência que interlocutores acreditam nulo...

Na verdade até aceito rejeição quando não existe mais tolerância por algum motivo...

Daí, preferível que a coisa seja feito às claras...

Convivência onde se aturam somente para manter protocolos sociais vira uma tortura psicológica onde sentimentos tortos servem apenas de chantagem psicológica vitimando quem está, de alguma forma, em desvantagem e necessita da presença e atenção do outro...

Daí o melhor é se afastarem mesmo para cada um dar um jeito de tocar sua vida, seja lá da forma que for possível, longe desta convivência doentia que vai minando a liberdade de cada um ser feliz...

Pois bem...

A senhorinha transparecia querer desconhecer como seus filhos estavam sendo rudes com ela...

De repente...

A idosa remexe a bolsa durante bom tempo...

E...

- Não estou achando a chave de casa...

Eles haviam se apossado da sua chave de casa...

Ela não mais voltaria pra casa...

Estava indo para o asilo da Rua São Miguel para não mais voltar...

Seu cantinho; suas relíquias; suas referências; seus santinhos de cabeceira; fotos e amuletos ficaram pra trás, para sempre...

Ela, enquanto revira novamente a bolsa...

- Como é que vou entrar novamente em casa sem minha chave?

Não sei como eles a convenceram a pegar um táxi...

Talvez tenham dito que iriam ao médico; visitar um amigo; participar de uma festa...

Na realidade, ela estava sendo despejada sem denúncia vazia...

Chegamos na Rua São Miguel...

Localizo a casa branca de muros altos numa curva de esquina...

Tocam a campainha...

É ali...

Uma moça atende e abraça a senhora meio sem entender seu destino...

Filha, mãe e enfermeira atravessam o portão que se fecha...

O filho fica comigo no carro...

- Motorista, vamos voltar ao Leblon para apanhar as coisas da minha mãe; principalmente seu travesseiro, ela não dorme sem ele...

- Por que vocês já não trouxeram a mudança toda?

- Ela não sabe de nada, você não iria entender...

- Olha só, se o senhor não se incomodar prefiro que pegue outro táxi; não quero ser parceiro involuntário do final desta história...

- Você não está entendendo, não tinha outra opção, é o melhor pra ela...

- Ok, só que vocês não tinham o direito de tirar dela o sonho de algum dia voltar pra casa...

Retirar a chave de casa da bolsa foi a senha definitiva e cruel que poderia ter sido evitada...

Não deveriam...

Ele ainda tenta me explicar melhor como a auto purgar sua culpa...

Diz que paga o dobro da corrida para contar em detalhes os motivos da sua decisão...

Me recusei escutar...

Parei outro táxi e o coloquei dentro...

E fiquei a imaginar como não devemos acumular objetos e sentimentos que algum dia podem nos confiscar...

E, jamais tenho travesseiro de estimação...

Se me retirarem todas almofadas...

Todos amores pela metade...

Não perco noite de sono...

Deito a cabeça num tijolo e durmo feito pedra...

Tô nem aí pra Hora do Brasil...

Dormir é comigo mesmo...

Nunca para sempre, lógico...

Vou ficar pra semente...

Evidente...




Jorge Schweitzer






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