domingo, 23 de fevereiro de 2014

Estou morrendo, sem saudades...






Eu era guri...

Lembro bem...

O primeiro texto que recebi para interpretação tirei zero...

Descrevia as horas...

Filosofava se elas nos seriam menos ou mais...

Sequer percebi que se tratava de um relógio...

Pôs bueno...

Na semana passada descobri que elas já me são menos...

Tomei um susto...

Daqueles que recebemos um por ano...

Como um sinal...

Fiquei silêncio...

Paralisado em meio ao nada...

Sem revolta...

Me dei o prazo de dois dias para ver como evoluiria...

Nesse hiato fui maldizendo baixinho as coisas que deixei de fazer...

Planos que sempre imagino a hora correta do dia seguinte...

Engraçado, não rezei...

No meio do medo maior de não conseguir mais ser protagonista...

Não orei aos céus para pelo menos mais dois dias de prazo...

O que tem que ser já está escrito...

Vou fazendo a minha parte contando que os designios colaborem...

Nem que seja um pouco de nada...

Daí...

Então, daí...

Comecei a melhorar...

Como um dos  tantos outros milagres...

Claro, lembrei da lógica dança do cisne...

O prenúncio final...

Como o crepúsculo alçado a beira do abismo...

Não era...

A rotação solene voltou um pouco para mais...

Resolvi checar...

Num posto do SUS...

Certamente seria marcado para daqui uns dois meses...

Que nada...

Pediram que eu aguardasse para ser atendido no segundo andar...

Por...

Uma médica...

Perguntei se eles não possuiam uma profissional cubana...

Não, me juraram que ela era um doce...

Cada paciente que entrava levava muito tempo no consultório...

Pensei em desistir...

Li o jornal inteiro que comprei na banca do outro lado da rua...

Quando os restos deste jornal eram disputados pelos outros pacientes na recepção...

Fui chamado...

Ela pronunciou meu sobrenome com perfeição na borda da sua porta...

Entrei...

Tinha um sorriso leve e olhar lindo...

Daqueles adestrados para nos dar as piores notícias...

De cabeça baixa foi anotando...

Me circulou; olhou; mediu pressão duas vezes; segurou meu pulso; deu socos em meus rins...

- Doeu?

- Não!

Devo confessar...

Fico constrangido em ser tocado por uma mulher desconhecida sem poder retribuir...

Escreveu, escreveu, escreveu...

Me contou que sabe que 'é' junto com 'i' em alemão se pronuncia 'ái'...

Disse a única frase completa no idioma  que conhece: 'eu quero um copo de água' (Ich möchte ein glas wasser)...

Talvez tenha treinado para algum congresso médico em Frankfurt...

Rimos...

Contei que não vou a medico nunca...

Da última vez um me passou vários exames que não fiz...

- Pois eu estou lhe passando vários exames que você só volta a me procurar se fizer...

Perguntei se ela poderia me dar receita para eu pegar losartana de graça, já que minha receita já está vencida a mais de ano...

- Não, não vou fazer nada que você quiser...

- Eu vou voltar!

- Duvido, você vai melhorar e nunca mais volta aqui!

Médica muito mala...

Mas, ela tem razão...

Na realidade não necessito de médico pra nada...

Quer dizer...

Somente para me avisar que restam apenas exatas tantas horas para tudo me acabar...

Daí eu vou lá e faço o que tem que ser feito...

Uma grande lambança inesquecível antes do apagar de tudo...

Não irei embora enquanto não colocar um ponto final em cada reticência...






Jorge Schweitzer





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