domingo, 30 de março de 2014

Flor de Cactos







Antes do anoitecer...

Todo dia...

Abaixo dos Arcos da Lapa no Rio de Janeiro, uma fila imensa de moradores de rua é formada...

Aguardam comida distribuída pelas madres do Convento das Carmelitas...

Muitos chegam bêbados, drogados...

Outros são sóbrios sem rumo...

Por algum acidente de percurso perderam o caminho de casa que já não existe mais...

Moram em lugar algum...

Catam latas, sobras, papelão...

Tempo desses sentei no meio fio e gravei depoimento de vários deles que preferi não reproduzir...

A maioria mantém o último elo com a civilização numa surrada carteira de trabalho que algum dia imaginam passaporte para encontrar emprego...

Guardam como tesouro o documento sem nenhuma anotação no meio dos trapos...

Algum dia planejam submergir do nada para a vida...

A ressaca do dia seguinte nunca permite...

Ficar um dia sem bebida ou droga é a certeza de uma noite onde todos fantasmas da realidade retornam para impedir o sono...

Não há como manter a lucidez...

Deus já os abandonou...

O poder público, muito antes...

Sem ajuda jamais localizarão o retorno...

Ninguém dará trabalho para desdentado barbudo roto sem endereço fixo...

Para quem mantém discurso elitista  que se tratam de vagabundos irrecuperáveis ainda não percebeu a fragilidade da vida e os descaminhos em  indesejáveis eclipses mentais que escalam qualquer um perder todas referências sociais...

Tempos atrás um morador de rua só foi localizado em São Paulo após sepultado como indigente e descobriu-se que era um milionário herdeiro do espólio do Banco Português do Brasil...

Tempos atrás conheci um bêbado e esquizofrênico que circulava com a mãe maltrapilha pelas adjacências da Rua da Lapa, Joaquim Silva e Augusto Severo no Rio de Janeiro...

Alguns me diziam que era um poeta, outros que era pintor...

Nunca acreditei...

De repente, ele desapareceu...

Morreu após a mãe...

No dia seguinte...

Seu obitário prencheu grande espaço no jornal O Globo e Jornal do Brasil...

Era o maior gravurista brasileiro vivo, até então, com obras expostas em museus importantes da França, Museu de Belas Artes e no Museu de Arte Moderna...

Um artista plástico lhe montou atelier no alto de Santa Teresa,  ele preferia as ruas...

Um descendente de dono de cadeia de supermercados se auto-aprisionou no luxuoso condomínio Jardim Pernambuco, no Leblon, e passou a viver como indigente sendo  interditado por jogar pedras e fezes nos vizinhos durante anos...

A filha do maior maestro brasileiro se jogou da janela do apartamento após tempos enclausurada em casa...

O filho do maior documentarista do Brasil matou seu pai e esfaqueou a mãe...
  
Certa vez um leitor aqui do blog entrevistou um morador de rua em SP - que reproduzi por aqui - que logo após foi resgatado pela família para voltar a morar no Nordeste...

Num programa de TV presenciei seu depoimento que preferia voltar às ruas de SP por se considerar um estorvo pra família...

Noutra, eu gravei longa entrevista com um morador de rua gaúcho - que esteve em alguns reality shows - que possuia celular e página social na internet...

Foi na porta de um supermercado da Rua de Santana, logo ali perto da Central do Brasil...

Tempos depois liguei para seu celular que não mais atendeu...

Tomara que tenha se reencontrado...

E...

Tenho passado sempre na saída do Túnel da Frei Caneca e encontrado uma senhora que pendurou alguns objetos simetricamente organizados na grade do antigo estacionamento do Jornal O Dia...

Ela está sempre lá junto com outros mulas-sem-rabo e cachorros vira latas...

Dia desses, estava chovendo...

Ela varria o meio fio na frente do seu acampamento improvisado para evitar sujeita na sua porta...

Ali é seu lar, doce lar...

Volta e meia arremesso uma nota de vinte na sua direção e sigo em frente...

Ela jamais saberá quem sou eu...

Pelo retrovisor sempre avisto ela ainda com as mãos postas na minha direção segurando a nota lançada pelo seu anônimo...

Não resolverá nada...

Lógico...

Não importa...

É meu acalanto...

Como  flor de cactos...

Que nasce no meio dos espinhos e ramos...

E só aparece quando o sol some...

Para que somente alguns possam contemplar...





Jorge Schweitzer



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